Malfeitona é uma multiartista, tatuadora, comunicadora e pesquisadora baiana. Ganhou notoriedade artística por ser pioneira e uma das principais popularizadoras da tatuagem contemporânea. Categorizada muitas vezes como “trash tattoo”, “ignorant Style” ou mesmo “estilo malfeitona”, a artista chamava o próprio estilo de “tatuagens peba”, termo comum no nordeste para se referir a algo barato ou de baixa qualidade. Seu estilo gerou discussão sobre o belo, o feio e o que pode ser considerado arte e colocado na pele.
Todas as criações e produções de Malfeitona são perpassadas pela Tropical Darkzera, conceito que vai além do conteúdo e estética, mas também do método de criação e o modo de ser no mundo da artista. Ao retratar a cultura baiana e nordestina como rica, plural e tecnológica, Malfeitona reconhece termos como “peba” e “armengue”, mostrando que são ser sinais de resistência e adaptação criativa à restrição de recursos. Ao mesmo tempo, Malfeitona é contra a romantização das dificuldades e busca desmistificar a ideia da Bahia e do tropical como algo leve, colorido e a serviço do turismo, destacando seu lado intenso, enérgico, genioso, agressivo, disruptivo e questionador.
Seu trabalho inclui ilustrações de caranguejos e sóis agressivos, a associação de espinhos de cacto com acessórios punk e a mescla de rock com o pagodão baiano. Malfeitona defende que o carnaval de salvador é muito mais intenso de que qualquer festival de black metal, que o mangue e o sertão podem ser mais sombrios do que qualquer floresta escandinava, que as placas e sinalizações dos camelôs são uma aula de design e comunicação, é defensora ferrenha da fonte comic sans e defende que donas de casa são artistas e artesãs da mais alta estirpe. Assim como a mercearia de seu tio, que vende carne seca e alimentos de dia, mas funciona como bar à noite e como garagem para seu carro de madrugada, Malfeitona acredita as pessoas podem ser e criar mais de uma coisa ao mesmo tempo e deixa sua marca em tudo o que cria, seja ilustrações, tatuagens, música ou conteúdo digital.
As obras de Malfeitona são um reflexo da grande mistura de referências que tornam a artista única: traços simples, mas com muitos detalhes; contrastes entre o fofo e o agressivo; assuntos sérios ilustrados com humor, e temas leves com linguagens rebuscadas; cores vivas e chapadas, excesso de informação, mistura de estampas como crítica ao que é considerado elegante, ao “academicismo artístico” e à cultura da perfeição na arte.
Expressiva e original, Malfeitona traz influências de sua infância – a estética dos anos 1990, dos quadrinhos, dos animes japoneses que passavam na TV aberta, da arte popular amadora – como panos de prato, muros de creches e placas –, e também das sinalizações de comércio de ruas de Salvador e interior da Bahia.
A tropical darkzera e o método “mete mão e faz”: Malfeitona nasceu e viveu grande parte de sua vida em Salvador, uma cidade que respira arte, mas também uma cidade desigual e uma das capitais com o maior número de trabalhadores informais do Brasil. Tendo crescido na mesma casa e no mesmo bairro que sua família, viu seus avós e tios tirarem seu sustento como autônomos, com pequenos negócios no bairro. Assistiu também a sua mãe, tias e avó cuidando dos lares, mas também customizando roupas, panos de prato e criando as artes que decoravam as casas. Malfeitona observava a cidade como um museu a céu aberto, apreciando os artistas de rua, os muros das escolas infantis pintados com personagens famosos cujas proporções se distorciam no acabamento dos muros e aprendia com a estratégia de marketing dos camelôs e de seu avô feirante.
A tropical darkzera se reflete então também em relação ao método de criação, misturando o que aprendeu com a cidade e com o rock: Viu seus familiares e conterrâneos dando conta, com muita criatividade, de múltiplas funções por conta própria e aprendendo através do fazer – administrar um comércio sem formação em administração, usando técnicas de marketing e comunicação aprendidas na vida; decorar e reformar casas e pontos comerciais sem arquitetos, com artes e móveis criados pelos próprios donos. Mais tarde, essa visão se fortaleceu ainda mais com o contato e as referências do conceito punk DIY, “Do It Yourself” “faça você mesmo”). Misturando os dois conceitos, malfeitona adota o “mete mão e faz”, a metodologia de aprender enquanto se faz, fazer mesmo sem saber e pelo simples motivo de “eu quero e/ou preciso criar isso hoje”.
Crescer e viver em Salvador trouxe ainda outra grande referência que norteia os trabalhos da artista em todas as esferas: o barroco baiano, estilo artístico marcado pela exuberância, riqueza de detalhes, pela sátira e, principalmente, pelo contraste da união entre o belo e o sombrio, assim como ela vê sua cidade natal, onde a beleza e a feiura da realidade andam juntos.
Na obra de Malfeitona, essas características estéticas também aparecem, mas em um estilo próprio, marcado tanto pelas influências do rock quanto pelos cenários e calor da Bahia, onde o sol “nervoso” é o mesmo para o lazer de alguns e para o trabalho intenso de outros na temporada de turismo. Malfeitona cria ilustrações de traços simples, mas cheio de detalhes, representando relações profundas como o sincretismo religioso com humor, onde as praias paradisíacas coexistem com mangues trevosos com caranguejos fofos, mas com olhar assassino, e abusa da figura do morcego: geralmente utilizado na arte como um símbolo “dark”, é um dos animais mais abundantes e responsáveis pela manutenção dos biomas em regiões tropicais.
De criança evangélica a roqueira feminista, de engenheira mecânica a comunicadora, malfeitona sempre de mãos dadas com o contraste, a tecnologia, a arte e a cultura.
Teve uma criação evangélica rígida, e acompanhava seus pais nas reuniões e pregações das Testemunhas de Jeová. Lá, para que não atrapalhasse os adultos, precisava de uma “distração”: foi assim que começou a fazer seus primeiros desenhos em papeis rascunho que seriam descartados ao fim das reuniões, que lhe davam para que sossegasse e ficasse quieta. Desde então, ela nunca mais parou de desenhar, e hoje faz pinturas e objetos cenográficos; ilustrações em paredes, produtos e até em peles – tendo ganhado notoriedade artística através de suas disruptivas tatuagens.
Por sua condição social, não achava possível sonhar com uma carreira profissional nas artes pois via na educação tradicional a única forma de mobilidade social. Mantendo seus sonhos como hobby por falta de perspectiva, malfeitona foi excelente aluna na escola, tendo participado de olimpíadas de física e matemática e ganhado bolsas de estudos devido a suas notas. Passou no vestibular do Instituto Federal da Bahia onde cursou engenharia mecânica no período noturno, pois trabalhava durante o dia. Durante toda graduação estagiou e trabalhou em indústrias e construções, menos durante o ano que passou como estudante na universidade de Linkoping, na Suécia, através de bolsa de estudos do Ciencia Sem Fronteiras. Nessa época, criou o projeto de black metal atmosférico Nornir, ao qual não deu prosseguimento por ter voltado a uma realidade de trabalho e estudos no ano seguinte. Entre empregos, estágios e iniciação científica, trabalhou por 7 anos na área de engenharia, publicou artigos, capítulos de livros, apresentou trabalhos em congressos internacionais. Trabalhou em grandes empresas como a Petrobrás e a Hoerbiger, na Áustria.
O primeiro contato de malfeitona com a tatuagem foi aos 17 anos através do tatuador Guilherme Neto. Malfeitona e Neto tiveram, por um tempo, uma banda juntos, onde Neto era o guitarrista e Malfeitona cantora. Dessa relação nasceu uma amizade, Malfeitona teve sua pele tatuada pela primeira vez e se aproximou da tecnica trabalhando pontualmente como ajudante de Neto durante eventos de Falsh Day. Também observou a arte dos tatuadores Mad e da tatuadora Palosa, pioneiros da tatuagem em Salvador pois o estúdio onde atendiam se mudou para o ponto comercial andar térreo da casa de uma das melhores amigas de Malfeitona, onde ela costumava passar muito tempo.
Sem ambições de se tornar tatuadora, mas conhecendo o básico do método, ainda durante a graduação em engenharia Malfeitona importou da China um kit acessível de tatuagem com o objetivo de tatuar a si mesma e seu ex-namorado. A primeira tatuagem feita por malfeitona, em 2017, foi um de seus desenhos, um morcego arisco na perna de seu ex-namorado. Para sua surpresa, suas amigas mais próximas começam a solicitar que também lhes tatuasse com seus desenhos, inclusive os amigos tatuadores que a ensinavam, enquanto eram tatuados, como melhorar sua técnica.
Seja por achar inusitado ou único, amigos dos amigos começam a lhe enviar mensagens interessados em ter um desenho de Malfeitona na pele e ela passou então a utilizar um espaço em uma casa de amigos na comunidade do Morro da Sereia, no Rio Vermelho, para tatuá-los a preço de custo. Ao postar em suas redes sociais pessoais, recebeu críticas de que as tatuagens estavam mal feitas e os desenhos eram feios. Em resposta, Malfeitona cria a página de Instagram Malfeitona, anunciando “tatuagens peba” como se estivesse numa feira livre, afirmando que nenhuma tatuagem é pra sempre pois nossa pele durará menos no mundo do que uma sacola plástica de supermercado, satirizando as críticas academicismo nas artes. Cresce o número de interessados em se tatuar domingos e feriados, únicos dias em que não estava trabalhando ou estudando.
Após um tempo, Malfeitona concede entrevista ao G1 local e e a cliente do dia elege dois desenhos que se tornaram e são até hoje suas obras mais conhecidas: a Mônica Darkzera e o Dollynho de Ressaca. A matéria e o estilo artístico muito próprio e incomum entre tatuadores gerou polêmica no mundo da arte e no universo da tatuagem. Surgem milhares de matérias sobre o assunto, muitas com informações falsas.
Grandes Youtubers como Felipe Neto e PC Siqueira criam conteúdos negativos sobre suas tatuagens e malfeitona recebe uma onda de ódio em suas redes sociais, incluindo ameaças de violência física. Com medo e a saúde mental abalada, Malfeitona desativa suas redes sociais (hoje em dia brinca com o fato – poderia ter ganhado milhares de seguidores). Junto com os haters vieram os apoiadores: identificados com sua filosofia e cativados por sua arte, pessoas e artistas começam a apoiar malfeitona, que volta a ativa nas redes após a Turma da Mônica fazer a versão oficial da Monica Darkzera.
A partir dessa projeção, Malfeitona foi uma das pessoas que popularizou no Brasil e no exterior os chamados “ignorant style”, “homemade tattoo” e “trash tattoo” – que ela já denominava “tatuagens peba”, levando o termo de origem nordestina e nortista para reportagens publicadas em veículos de mídia nacionais e internacionais. Por alguns anos Malfeitona continuou trabalhando em paralelo com outras atividades não relacionadas à arte, mas, graças às redes sociais, em 2021 consegue transicionar de vez de carreira e se dedicar integralmente a todas as vertentes das artes que ama.
Foi online que encontrou um nicho para se estabelecer como artista, e foi por conta de seu fascínio pela internet que decidiu fazer seu mestrado em Comunicação na UFBA, estudando como os algoritmos das plataformas digitais atravessam a sociedade, especialmente na área do trabalho. Durante o mestrado, Malfeitona apresentou seu trabalho em congressos, ministrou aulas e criou a personagem Dona Algo, a algoritma das plataformas digitais. Dona Algo foi criada para democratizar o conhecimento sobre como funcionam os algoritmos e participou de eventos e podcasts relacionados a tecnologia e comunicação. Hoje, Malfeitona cursa pós-graduação em jornalismo digital e pontualmente ministra aulas e palestras em universidades e faculdades e participa de congressos internacionais sobre algoritmos e plataformas digitais, além da democratização da ciência e do acesso de mulheres à área de exatas.
Os desenhos Malfeitona não estão apenas em peles, mas em capas de livros, como O Alienista, relançamento de Machado de Assis da Editora planeta, em iversos produtos criados por ela ou em colaboração com marcas, em identidade visual de campanhas e eventos e até mesmo em videoclipa de música e animações.
Além da arte visual em diversas formas, nos últimos anos Malfeitona desenvolveu trabalhos como atriz, apresentadora, cantora, DJ, produtora e organizadora de eventos. Muito ativa na internet desde a época dos blogs e flogs, Malfeitona comunica nas redes sociais – especialmente TikTok, Instagram e Twitter – sua arte, visão de mundo, suas ideias e posicionamentos políticos. Apreciada ou criticada, Malfeitona e seu trabalho continuam sendo pauta de debate sobre arte, beleza e feiura no tribunal da internet.
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